A realidade do funcionalismo público no Brasil está distante do estigma lançado contra eles pelo governo Jair Bolsonaro. Chamados até de “parasitas” pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, os servidores têm uma remuneração média inferior a três salários mínimos. Conforme o Atlas do Estado Brasileiro, 48% dos funcionários ligados ao Poder Executivo – incluindo 61% dos servidores municipais – ganham até R$ 2.500 por mês.
O estudo foi feito pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), com base em dados de 2017. Alvos do nefasto projeto de reforma administrativa apresentado nesta quinta-feira (3) pelo governo Bolsonaro, esses servidores são acusados, sobretudo por Guedes, de terem supersalários e outros privilégios, como uma estabilidade irrestrita. Nenhuma dessas ilações, porém, se sustenta.
Em 2017, havia no País 11,4 milhões de trabalhadores no serviço público. Em média, eles recebiam 19% a mais do que um trabalhador da iniciativa privada em função semelhante. Porém, essa diferença é comum – e ainda maior – pelo mundo. Os 19% de distância no Brasil estão abaixo da média de 53 países listados em levantamento recente do Banco Mundial.
Uma das principais marcas do funcionalismo brasileiro é, sim, a desigualdade. Embora haja até remunerações inconstitucionais, essa parcela representa uma minoria no serviço público. E é sobretudo no Poder Executivo que a média salarial cai, conforme destacou, nesta quinta-feira (3), reportagem da Deutsche Welle (DW): “O holerite médio de um servidor do Executivo é de R$ 3,9 mil, equivalente a 65% do salário médio de R$ 6 mil de um funcionário do Legislativo, que por sua vez é metade do salário médio de R$ 12 mil de um servidor do Judiciário”. Da mesma maneira, os servidores municipais brasileiros ganham, em média, de R$ 2,9 mil.
No subgrupo gênero, as mulheres perdem para os homens em termos de ganhos salariais e mesmo em postos hierárquicos. “Em 2017, mulheres tinham uma remuneração em média 14% menor do que os homens no Executivo federal civil e no Legislativo, e 7% menor no Judiciário. Nas funções de confiança do governo federal, conhecidas pela sigla DAS, mulheres ocupavam naquele ano apenas 16,7% dos cargos de nível mais alto, os DAS-6, e 24% do segundo nível mais alto, o DAS-5”, detalhou a DW.
Ouvida na reportagem, a professora Gabriela Lotta, coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia da FGV, afirma que “o Estado representa a sociedade – e em qualquer lugar do mundo é difícil ter uma administração pública distinta da sociedade”. Segundo Gabriela, “as mulheres estão no executivo municipal, trabalhando com saúde e educação, onde se ganha menos. E os homens no Judiciário e no Legislativo federal. Há várias camadas da desigualdade”.
A reforma administrativa de Paulo Guedes e Bolsonaro não enfrenta esse desafio – até porque parte de premissas falaciosas, como o mito dos supersalários. Por isso – diz Gabriela Lotta –, cotas de gênero e raça são necessárias em concursos públicos para enfrentar o “processo desigual de acesso”, baseado exclusivamente no mérito. “É a mesma lógica do vestibular. As pessoas carregam desigualdades prévias, a menos que haja políticas afirmativas”, afirma a pesquisadora.
Na opinião do pesquisador Felix Lopez, do Ipea, há um caminho mais viável e justo para enfrentar os casos de supersalários. Basta regulamentar o artigo da Constituição que proíbe remunerações superiores às dos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal). Cada um dos 11 integrantes da Corte ganha R$ 39,2 mil – o que deveria ser o teto constitucional. Apesar da regra, há servidores com rendimentos superiores a R$ 100 mil por mês, especialmente alguns juízes e membros do Ministério Público.
Coordenador do Atlas do Estado Brasileiro, Felix Lopez não tem dúvida: aplicar, de fato, o teto salarial já seria “uma medida simples e bastante saneadora. Transformaria, como se vê, a remuneração do setor público”. Mas ousadias do tipo não comparecem na reforma administrativa bolsonarista.
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