A ocasião de uma grave pandemia trouxe a necessidade de adotar medidas excepcionais para conter a propagação de um vírus altamente contagiante, infeccioso e letal. Ainda que o Governo Federal tenha até o momento agido na contramão das recomendações sanitárias globalmente aceitas e praticadas e carregue nas mãos o sangue de quase quarenta mil vidas ceifadas, em âmbito dos Estados e Municípios a postura tem sido mais responsável e correta, com decretação de instruções e normas que cumprem as exigências de isolamento social e interdição de atividades que resultem em aglomerações e contato.
Na Educação, pode se dizer que os protocolos estão de acordo com aquilo que deveria ser padrão. As escolas foram rapidamente orientadas a encerrar suas atividades físicas e presenciais e passou-se a organizar o trabalho burocrático-administrativo e pedagógico através dos recursos digitais. Sobressaiu nesse aspecto a ideia do Ensino a Distância, conhecido com EAD, e o Trabalho/Educação Remoto/a e esse mote nos interessa debater.
Trataremos então de dar uma visão panorâmica a respeito desse último aspecto, detendo-se particularmente na questão do trabalho docente, sem negligenciar funcionários de escola, tampouco a razão de ser da Educação – os educandos. Mas, para fins dessa primeira reflexão, vamos nos circunscrever aos professores/as e nas suas condições de execução do fazer didático, pedagógico e metodológico.
Também se torna necessário advertir que a par das similitudes e correspondências, abordaremos o caso concreto e específico da rede pública estadual do Rio Grande do Sul, realizando quando possível ou adequado conexões com outras situações.
Inicialmente, é preciso desfazer uma confusão: o que temos não se configura nem de perto com a modalidade de Educação a Distância. Para se classificar como EaD uma série de características e estruturas devem estar agregadas para o seu funcionamento pleno. A começar por um projeto político-pedagógico acompanhado de suporte, manutenção e acompanhamento abrangente, completo e totalizador. Além de uma plataforma própria, requisita-se quadros profissionais destacados para cumprir distintas funções, desde a formulação do material educativo, passando pelos que interagem diretamente com os educandos e chegando naqueles que cuidam do desenvolvimento das atividades. Sendo assim o ensino EAD não foi cogitado para a Educação pois demandaria tempo e investimento.
O que apareceu em virtude das circunstâncias é algo bem diferente. Os educadores foram instados a oferecer atividades aos alunos como forma de manter a relação pedagógica e o exercício da leitura, do estudo, da pesquisa e da confecção de trabalhos escolares. A ideia que motivou tal encaminhamento era a de aproveitar as mesmas para contabilizar conteúdos, aprendizados e carga horária/dias letivos válidos. Mas o afogadilho das orientações e resoluções desconsiderou diversos itens, a começar pelo domínio e acesso às tecnologias informáticas.
Ademais, a aplicação do modelo digital acontece num quadro onde – via de regra – os professores/as detém elevada jornada de trabalho, número de turmas e alunos muito acima do que seria recomendável (ainda mais para realização de trabalho remoto), precárias condições salariais que dêem sustento aos gastos com equipamentos (que, aliás, deveriam ser fornecidos pelo gestor governamental), ausência ou insuficiência de formação teórica e prática, nenhuma regulação (ou observação) da jornada extra-classe (hora atividade), exposição a fatores de adoecimento decorrentes da atividade digital, entre outras questões que poderiam ser elencadas e uma que tentamos esconder que é o analfabetismo digital por parte de nós docentes dominar aplicativos, verificar plágios entre tantos outros recursos que o mundo digital oferece.
Em resumo, a adoção linear do trabalho remoto ao que se tem como condições de trabalho, salário, saúde e acessibilidade na Educação agravou o sobretrabalho, a ocorrência de doenças ocupacionais, a tomada do tempo livre do sujeito, o dispêndio de recursos pessoais para dar conta ao exigido e abre precedentes sérios para a redução de trabalhadores em educação no ramo da atividade docente, trabalho precário em diferentes formatos (terceirização, uberização), bem como a permissiva adoção de parcerias e contratos entre o setor público-estatal e empresas ou fundações interessadas antes em faturar gordas fatias do orçamento destinado à Educação ou inculcar sua doutrinação ideológica mercantil e meritocrática e uma possível padronização brutal do saber aprender.
Cumpre ainda ressaltar que na profissão docente é esmagadoramente majoritária a presença do sexo feminino e é indispensável falar da dupla e tripla jornada de trabalho ainda como traço persistente da realidade social e cultural, não raro combinada com a existência de famílias monoparentais ou da condição de sustento da casa por parte das mulheres (muitas vezes a única fonte de renda estável e regular).
Agrega-se a isso um elemento de caráter político fundamental: a implicação da EC95 no financiamento da Educação Pública. Com valores congelados e reduzidos por conta da crise econômica, a saída comum dos governantes tem sido sobrecarregar docentes, técnicos-administrativos e pessoal de suporte e manutenção. Com a pandemia, essa situação se agrava, seja através do acúmulo de funções e tarefas, seja pela dispensa de pessoal, seja pela proibição de reposição ou reajuste de salários (no caso gaúcho, quase seis anos sem nenhum tostão a mais).
Enfim, o que se observa em curso no Rio Grande do Sul é facilmente percebido em outros Estados, sistemas e redes. No Distrito Federal, com a readequação há o temor de que se realize dispensa em massa de professores e funcionários. No Amazonas, mesmo com os dados dramáticos de contaminação e mortes computados, o Governo Estadual anunciou o atendimento presencial na Secretaria de Educação, o que indica uma possível volta às aulas presenciais, expondo a vida dos trabalhadores em educação, dos alunos e das famílias ao Coronavírus, além de dobrar a carga de trabalho (presencial e virtual).
A mera transferência dos padrões e práticas do modelo e estrutura do ensino presencial para meios tecnológicos, geralmente improvisados, sem discussão com a representação sindical, atropelando a gestão democrática e as instâncias/órgãos de participação da comunidade escolar, denotam uma política avessa a resolução coletiva e equânime dos problemas e desafios surgidos numa conjuntura de exceção, servindo mais para avançar nas agendas destrutivas e retrógradas quanto à escola pública, gratuita e de qualidade pela qual nos batemos há décadas. Buscar essa qualidade na escola pública se tornou pauta central na discussão sobre esse ensino virtual, ou seja, o acesso aos instrumentos bem como o universalidade da rede de banda larga para todos os recantos do país.
O trabalho remoto inscreve-se, portanto, num quadro mais geral, com tendências a assumir um “novo” modus operandi nas relações de trabalho impostas aos educadores, reforçadas pela hegemonia avassaladora do neoliberalismo – componente que unifica a Extrema-Direita e à Direita dita Democrática. O movimento sindical e educacional, de forma ampla, agregando a juventude estudantil, as associações pedagógicas, a intelectualidade orgânica, os partidos políticos progressistas e demais movimentos sociais precisam urgente abordar a questão e transformá-la em pauta e luta – nas ruas, nas redes, nas instituições, no parlamento e nos corações e mentes dos brasileiros e brasileiras – sob pena de ser tragado pelas forças do retrocesso e realidade se tornar cada dia mais virtual e distante do alcance dos menos favorecidos e tornando a educação pública mera reprodutora de uma educação bancária mais sofisticada.
Em tempo: embora não tenha relação com o tema disposto no artigo, registramos aqui nosso profundo repúdio à edição da MP 979, uma agressão covarde e não sem interesse aos princípios da Autonomia Universitária e à Democracia.
Alex Saratt e Leonardo Preto Echevarria são professores da rede pública estadual do Rio Grande do Sul e militantes da CTB.